Ética: seja um pesquisador responsável

Agora que está tudo pronto para fazer o bolo e para avaliá-lo, vamos detalhar alguns pontos do projeto de pesquisa. Apesar dos Aspectos Éticos, por sua importância, serem abordados em uma seção ou capítulo separado, eles estão diretamente relacionados com a seção anterior, Materiais e Métodos.

A ética é um dos pilares fundamentais da prática profissional e científica, assegurando que os direitos e o bem-estar dos participantes sejam sempre respeitados. Entender os aspectos conceituais e históricos da ética e bioética, bem como as normas regulatórias, é essencial para qualquer pesquisador. Este artigo abordará esses temas, oferecendo uma visão abrangente para pesquisadores iniciantes.

Distinção entre moral e ética

A moral é composta por valores e normas coletivas, adotados por uma comunidade em determinado tempo. A ética, por sua vez, é a reflexão crítica e filosófica sobre esses valores e normas, incluindo tanto a perspectiva individual quanto a coletiva. Os dois conceitos são dinâmicos e evoluem ao longo do tempo, influenciados por mudanças sociais, culturais, científicas e tecnológicas. Situações que eram moral e eticamente aceitáveis no passado podem ser vistas como inaceitáveis atualmente.

A ética orienta a conduta dos indivíduos, tanto no âmbito social quanto no profissional. Pode-se dizer que a sociedade possui um “código de conduta” subliminar, que espera-se que seja seguido pelas pessoas. Já as profissões possuem códigos de ética e deontologia que orientam a conduta profissional. A deontologia é um ramo específico da ética que se concentra nos deveres e nas obrigações, ou seja, nas normas do exercício profissional propriamente ditas.

Origens da ética

A ética tem suas origens na Grécia Antiga, onde Sócrates, Platão e Aristóteles, entre outros, iniciaram debates profundos sobre a natureza do bem, da justiça e da virtude. Eles buscavam entender o que constitui uma vida boa e justa, estabelecendo os valores básicos da ética: respeito (ou autonomia), justiça, benevolência e não maleficência.

Com o aumento da complexidade social e cultural da humanidade e os avanços científicos, principalmente na segunda metade do século XX, houve necessidade de aprofundar a discussão ética para enfrentar questões complexas emergentes relacionadas principalmente às ciências da vida e à Medicina. Surgiu então a bioética, um ramo multidisciplinar que se preocupa com dilemas que surgem da interação entre biologia, medicina e os valores humanos, como a moralidade e os direitos individuais.

Um pouco de história

Até o início do século XX, a pesquisa científica frequentemente negligenciava os direitos e o bem-estar dos participantes. Estudos como o Experimento de Sífilis de Tuskegee, onde participantes negros foram enganados e privados de tratamento, exemplificam práticas eticamente deficientes.

Um grande impulsionador da discussão da ética em pesquisa foram as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial sob a desculpa do desenvolvimento científico. Durante o julgamento dos crimes de guerra na cidade alemã de Nuremberg, foi estabelecido o primeiro conjunto formal de diretrizes éticas, o Código de Nuremberg (1947). Ele estabeleceu 10 princípios éticos essenciais para pesquisa envolvendo seres humanos, incluindo a necessidade de consentimento voluntário (autonomia ou respeito) e a obrigação de evitar sofrimento desnecessário (não maleficência).

Outro marco da evolução da ética em pesquisa foi a Declaração de Helsinque, adotada pela Associação Médica Mundial em 1964. Esta declaração expandiu os princípios do Código de Nuremberg, fornecendo diretrizes mais abrangentes para a condução de pesquisas médicas. A Declaração de Helsinque enfatiza que a saúde e os direitos dos pacientes devem estar acima de todos os outros interesses (benevolência) e introduz a ideia de que os resultados da pesquisa devem ser acessíveis ao público. Desde sua adoção, a declaração passou por várias revisões, a mais recente em 2013, para abordar os desafios éticos emergentes na pesquisa médica, como o uso de novas tecnologias e biobancos.

Ética em pesquisa no Brasil

No Brasil, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) é responsável por avaliar e supervisionar os aspectos éticos das pesquisas em seres humanos. A CONEP foi criada em 1996 para assegurar que todas as pesquisas envolvendo seres humanos sejam conduzidas de acordo com os mais altos padrões éticos. Uma das principais diretrizes da CONEP é a proteção dos direitos dos participantes, garantindo que a segurança, a privacidade e a dignidade dos indivíduos sejam sempre priorizadas.

Antes do início de qualquer estudo, os projetos devem ser submetidos a um Comitê de Ética em Pesquisa institucional (CEP), por meio da Plataforma Brasil. O CEP é composto por uma equipe multidisciplinar de profissionais de diversas áreas, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos, advogados e membros da comunidade. Esta diversidade garante uma avaliação ética abrangente e equilibrada dos projetos de pesquisa. A função principal do CEP é revisar e aprovar os projetos de pesquisa, assegurando que todos os aspectos éticos sejam considerados. Além disso, ele tem a responsabilidade de monitorar a execução dos projetos para garantir que os padrões éticos sejam mantidos ao longo do estudo. A educação e o treinamento contínuo dos pesquisadores sobre questões éticas em pesquisa também são promovidos pelo CEP, garantindo que todos estejam atualizados sobre as melhores práticas e regulamentações éticas. Os CEPs são fiscalizados pela CONEP e devem atuar de forma padronizada.

Principais Resoluções da CONEP:

    • CNS nº 466/2012:estabelece as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, destacando a necessidade de respeito à dignidade humana, à proteção dos participantes de pesquisa, e ao consentimento livre e esclarecido.
    • CNS nº 510/2016:versa especificamente sobre pesquisas nas ciências humanas e sociais. Reconhece as peculiaridades dessas áreas de pesquisa e ajusta as exigências éticas, mantendo a proteção aos participantes e a necessidade de consentimento informado.
    • CNS nº 563/2017:trata da pesquisa com novas tecnologias em saúde, incluindo estudos de genoma e outras inovações biotecnológicas. Estabelece diretrizes para a condução dessas pesquisas de maneira ética, assegurando a proteção dos participantes e a integridade dos dados.
    • CNS nº 580/2018:complementa e atualiza a Resolução CNS nº 466/2012, abordando aspectos específicos e emergentes na pesquisa em saúde. Detalha questões relativas à biossegurança, proteção de dados pessoais, e a utilização de novas tecnologias.
    • CNS nº 506/2016:atualiza e detalha as diretrizes para o funcionamento do Sistema CEP/CONEP, assegurando uma avaliação ética eficiente e padronizada em todas as regiões do país.

Aspectos Éticos do projeto de pesquisa

As questões éticas devem ser abordadas em uma seção específica do projeto de pesquisa, geralmente chamada de “Aspectos Éticos”. Além disso, é preciso elaborar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que é um apêndice do projeto, mas que também deve ser enviado em separado na Plataforma Brasil. Normalmente, os CEPs das instituições têm um modelo de TCLE, que pode sofrer algumas variações. Dica importante: siga o modelo do CEP da sua instituição, isso facilita a revisão e evita contratempos. Não crie um modelo novo ou alternativo de TCLE! A seguir, vamos ver os tópicos que fazem parte do TCLE e quais deles devem ser incluídos na seção Aspectos Éticos do projeto.

Dados da pesquisa (apenas TCLE): contém o título do projeto, identificação dos pesquisadores, incluindo contato de pelo menos um pesquisador (pode ser dados comerciais), patrocinadores (se não houver, informe que o estudo é autofinanciado) e um texto padronizado sobre o que é pesquisa, participação voluntária e TCLE.

Informações da pesquisa: esta é a parte mais longa. Os primeiros três subitens fazem parte apenas do TCLE. Neles você deve apresentar a justificativa do projeto (normalmente faço um parágrafo de introdução e um de justificativa), o objetivo geral e a metodologia (pontos mais relevantes em um ou dois parágrafos).

Riscos e desconfortos (TCLE e projeto): não negligencie este tópico. Mesmo em estudos que não envolvem procedimentos invasivos (riscos físicos), como a retirada de sangue ou o uso de medicamentos, sempre existem riscos associados à pesquisa. Eles podem incluir cansaço, desconforto ou constrangimento. O cansaço pode ocorrer em estudos que exigem longos períodos de coleta de dados ou múltiplas sessões. É importante planejar pausas adequadas e permitir que os participantes descansem quando necessário. O desconforto e o constrangimento são riscos particularmente relevantes em pesquisas que envolvem perguntas sensíveis ou pessoais. Por exemplo, em estudos que exploram experiências de vida ou comportamentos íntimos, os participantes podem sentir-se desconfortáveis ao compartilhar informações. Nesses casos, é essencial que os pesquisadores criem um ambiente seguro e acolhedor, garantindo que os participantes saibam que podem optar por não responder a perguntas específicas ou interromper sua participação a qualquer momento. A quebra de sigilo também é um risco que deve ser citado neste subitem, mas deve ser detalhada em um outro tópico logo a seguir.

Benefícios (TCLE e projeto): pode ser que não haja nenhum benefício potencial direto para o participante, mas que a participação dele auxilie o conhecimento sobre um tópico específico. Em outros casos, como um ensaio clínico, pode ser que o participante tenha acesso a um tratamento experimental que ainda não está disponível, o que poderia ser um benefício.

Acompanhamento longitudinal (apenas TCLE): especifique se haverá acompanhamento do participante, como em ensaios clínicos, coortes e estudos antes e depois. Se não houver, informe isso claramente.

Alternativas de Tratamento (apenas TCLE): especifique se há ou não alternativas de tratamento disponíveis. Se não houver, preencha com “não se aplica” ou “não haverá acompanhamento ou tratamento”.

Privacidade e confidencialidade (TCLE e projeto): do ponto de vista de ética em pesquisa, a privacidade refere-se ao direito do participante de proteger sua identidade e fornecer as informações que desejar. Já a confidencialidade é a proteção das informações coletadas contra acesso e divulgação não autorizada. Informe aos participantes como seus dados serão protegidos e as medidas que serão tomadas para garantir a confidencialidade. Medidas padrão de segurança incluem:

    • armazenamento do TCLE fisicamente separado dos questionários;
    • identificação dos questionários por códigos (identificador único);
    • análise e divulgação do conjunto de dados;
    • retirada dos dados na nuvem.

Ao final, reafirme que todos os esforços serão realizados para manter a confidencialidade das informações.

Acesso aos resultados (TCLE e Projeto): informe que o participante tem direito de acesso atualizado aos resultados da pesquisa, ainda que eles possam afetar a vontade dele em continuar participando da pesquisa.

Liberdade de recusar-se e retirar-se do estudo (TCLE e Projeto): informe que o voluntário tem total liberdade de participar ou não do estudo e que, mesmo optando por participar, pode desistir a qualquer momento. Além disso, garanta que, caso ele se recuse a participar ou retire seu consentimento posteriormente, não haverá nenhum tipo de represália.

Garantia de ressarcimento (apenas TCLE): deixe claro que não haverá nenhum tipo de remuneração ou compensação financeira. No Brasil, o pagamento pela participação em projetos de pesquisa é proibido. Por outro lado, o participante não deve ter nenhum custo e deve ser ressarcido de eventuais custos como alimentação ou transporte. Os pesquisadores podem oferecer alimentação como ressarcimento em caso de longa espera ou de procedimentos demorados.

Garantia de indenização (apenas TCLE): este tópico é obrigatório e deve constar de todos os TCLE. Informe que, caso ocorra qualquer problema ou dano pessoal durante ou após os procedimentos, será garantido o direito a tratamento imediato e gratuito na instituição de pesquisa e que isso não exclui a possibilidade de indenização determinada por lei, se o dano for decorrente da pesquisa.

Acesso ao pesquisador e às instituições (apenas TCLE): informe que o voluntário terá acesso aos pesquisadores e ao CEP a qualquer momento para esclarecer dúvidas que possam ocorrer ao longo da execução do projeto e forneça os dados de contato de um pesquisador e da instituição.

Consentimento do participante (apenas TCLE): este é um texto padrão que indica que o voluntário concorda em participar do estudo e que todas as suas dúvidas foram esclarecidas, resumindo os itens anteriores do TCLE. Este tópico é o consentimento propriamente dito.

Declaração do pesquisador (apenas TCLE): O pesquisador afirma que obteve o TCLE de forma apropriada e voluntária e se compromete a seguir todos os termos descritos. Após este trecho, deve haver espaço para local e data (todos devem ser datados pelo pesquisador) e para as assinaturas do voluntário, pesquisador e testemunha. Deve haver espaço também para a identificação do voluntário por meio de digital, caso ele não assine. Mesmo que todos os voluntários sejam alfabetizados, inclua este espaço.

No cabeçalho do documento deve constar o título do estudo e, no rodapé, um espaço para a rubrica do voluntário, pesquisador e testemunha.

O TCLE é obrigatório em todas as pesquisas que envolvem intervenção direta com os participantes. Isso inclui ensaios clínicos, pesquisas comportamentais e educacionais que requerem interação direta ou indireta com os participantes, como entrevistas ou questionários. Mesmo em estudos observacionais, nos quais há coleta de dados identificáveis sobre os participantes, ele é necessário para garantir que todos estejam cientes dos aspectos do estudo e concordem em participar. Também nos relatos de caso é obrigatória a sua obtenção.

Situações especiais

A princípio, todos os estudos que envolvam seres humanos devem ser obrigatoriamente avaliados pelo CEP. No entanto, em algumas situações, pode ser solicitada a dispensa do TCLE:

    • informações de domínio público ou acessíveis ao público em geral e que não há expectativa de privacidade ou confidencialidade;
    • dados previamente coletados de forma anônima e em que não é possível a identificação direta ou indireta dos participantes;
    • pesquisa realizada em locais públicos, onde os indivíduos não têm uma expectativa razoável de privacidade e não há interação direta com os participantes;
    • uso de banco de dados secundário quando a obtenção do TCLE não é viável operacionalmente e há expectativa razoável de benefício para um grupo populacional.

Por outro lado, há situações em que os projetos não precisam ser enviados ao CEP. Estes incluem estudos que não envolvem seres humanos, como pesquisas puramente teóricas ou laboratoriais com modelos não humanos. Revisões sistemáticas e meta-análises, que não envolvem a coleta de dados novos e apenas analisam dados já publicados, também não necessitam de avaliação ética. Da mesma forma, o uso de dados públicos e anonimizados, onde a identificação dos participantes não é possível, geralmente não requer submissão ao CEP.

Em determinadas situações, pode ser que o CEP tenha que enviar o projeto para a aprovação da CONEP, como no caso de envolvimento de populações vulneráveis (crianças, gestantes, prisioneiros e pessoas com deficiências mentais), ensaios clínicos multicêntricos internacionais, financiamento internacional e estudos genéticos. O envio à CONEP depende do nível de autonomia do CEP.

Conclusão

A ética em pesquisa é um elemento essencial para a integridade científica e o respeito aos direitos humanos. Este guia detalha a importância de compreender a distinção entre moral e ética, a evolução histórica da ética e bioética e as diretrizes regulatórias que garantem a proteção dos participantes em estudos científicos.

Para os pesquisadores iniciantes, é crucial adotar uma abordagem ética rigorosa desde o início de seus projetos, assegurando que todos os aspectos éticos sejam considerados e que as normas regulatórias sejam rigorosamente seguidas. A aprovação pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e a conformidade com as resoluções da CONEP são passos fundamentais para garantir que a pesquisa seja conduzida de maneira responsável e respeitosa.

Com a crescente complexidade das questões éticas na ciência moderna, é vital que os pesquisadores continuem a se educar e se adaptar às novas normas e desafios emergentes. A promoção contínua da educação ética e o compromisso com práticas de pesquisa responsáveis não apenas fortalecem a confiança do público na ciência, mas também promovem avanços significativos no conhecimento humano.